Espero que quando me conheceres continues a gostar de mim.
A última cadeira da manhã atrasou-o. Estava
inquieto por estar tão atrás na fila da cantina. Não estava com particular
apetite mas esfomeado do olhar dela. Andava absorvido pelo castanho vivo
profundo e pelas pestanas, densas, imensas que lhe trajavam o rosto. Sabia que
andava em direito e mais nada. À parte disso andava sempre rodeada de outros
colegas, mais rapazes que raparigas, o que lhe tirava fôlego para se atirar do
penhasco. Seria um mergulho a pique, dizer-lhe olá, comentar uma coisa qualquer
sobre o tempo do momento e ficar pendurado pelo desinteresse que estava certo,
ela lhe atiraria.
inquieto por estar tão atrás na fila da cantina. Não estava com particular
apetite mas esfomeado do olhar dela. Andava absorvido pelo castanho vivo
profundo e pelas pestanas, densas, imensas que lhe trajavam o rosto. Sabia que
andava em direito e mais nada. À parte disso andava sempre rodeada de outros
colegas, mais rapazes que raparigas, o que lhe tirava fôlego para se atirar do
penhasco. Seria um mergulho a pique, dizer-lhe olá, comentar uma coisa qualquer
sobre o tempo do momento e ficar pendurado pelo desinteresse que estava certo,
ela lhe atiraria.
Naquele dia almoçou sozinho sem a ver. A noite foi mais dura do
que as outras. Andou inquieto de sonho para sonho, todos difíceis pela ausência
dela. Acordou decidido a preencher o espaço das ideias com o vazio do esforço
físico. Pelas sete e meia, com a temperatura já nos 16 graus de um maio tímido,
lançou-se de patins à ciclovia junto à universidade. Ia embalado no equilíbrio
dos braços junto ao corpo rasteiro para ganhar velocidade, e nem a viu. Do
outro lado da estrada estavam os tais olhos castanhos num abraço imenso a Sara,
sete anos de alegria e sorriso fácil, que entrava apressada no autocarro da
escola, a despedir-se da mãe por detrás do vidro na companhia dos outros
traquinas. À segunda passagem, os patins já não encontraram ninguém. Marta
apressara-se a entrar para se preparar para as aulas, agora que a pequena Sara
estava despachada para o primeiro embate com a tabuada dos dois.
que as outras. Andou inquieto de sonho para sonho, todos difíceis pela ausência
dela. Acordou decidido a preencher o espaço das ideias com o vazio do esforço
físico. Pelas sete e meia, com a temperatura já nos 16 graus de um maio tímido,
lançou-se de patins à ciclovia junto à universidade. Ia embalado no equilíbrio
dos braços junto ao corpo rasteiro para ganhar velocidade, e nem a viu. Do
outro lado da estrada estavam os tais olhos castanhos num abraço imenso a Sara,
sete anos de alegria e sorriso fácil, que entrava apressada no autocarro da
escola, a despedir-se da mãe por detrás do vidro na companhia dos outros
traquinas. À segunda passagem, os patins já não encontraram ninguém. Marta
apressara-se a entrar para se preparar para as aulas, agora que a pequena Sara
estava despachada para o primeiro embate com a tabuada dos dois.
Renato também se apressou para chegar a horas a
Anatomia II para se concentrar nos ossos do pé. Uma dor de cabeça para o rapaz
que só se lembrava dos olhos e das pestanas dela. Com a anatomia assim trocada
correram duas horas a pensar na fila da cantina, onde chegou já com algum
atraso. Marta já lá estava a recolher a sopa e o empadão de atum com salada.
Viu-a a procurar a gelatina do costume, mas já não havia. Quando chegou à
frente, Renato optou pelo peixe no forno e acompanhou com maçã cozida. Quando o
empregado se aproximou para trocar o tabuleiro do empadão, Renato nem lhe deu
tempo para o pousar, questionando logo se já não havia gelatina. Os bigodes do
outro pareciam surdos à questão, concentrado que estava a encaixar o empadão na
bacia de água quente para não se queimar. Quando voltou à linha da frente, já
Renato estava a pagar, o homem atirou-lhe uma gelatina de morango.
Surpreendido, Renato agradeceu e logo estremeceu. Perguntara pela gelatina por
impulso, para ter um ponto de contato com os olhos dela. Mas agora que a
gelatina tremia à sua frente no caminho para uma mesa de almoço ainda por
sortear, sentiu-se ridiculamente pequeno, incapaz de avançar com a segunda
parte do processo.
Anatomia II para se concentrar nos ossos do pé. Uma dor de cabeça para o rapaz
que só se lembrava dos olhos e das pestanas dela. Com a anatomia assim trocada
correram duas horas a pensar na fila da cantina, onde chegou já com algum
atraso. Marta já lá estava a recolher a sopa e o empadão de atum com salada.
Viu-a a procurar a gelatina do costume, mas já não havia. Quando chegou à
frente, Renato optou pelo peixe no forno e acompanhou com maçã cozida. Quando o
empregado se aproximou para trocar o tabuleiro do empadão, Renato nem lhe deu
tempo para o pousar, questionando logo se já não havia gelatina. Os bigodes do
outro pareciam surdos à questão, concentrado que estava a encaixar o empadão na
bacia de água quente para não se queimar. Quando voltou à linha da frente, já
Renato estava a pagar, o homem atirou-lhe uma gelatina de morango.
Surpreendido, Renato agradeceu e logo estremeceu. Perguntara pela gelatina por
impulso, para ter um ponto de contato com os olhos dela. Mas agora que a
gelatina tremia à sua frente no caminho para uma mesa de almoço ainda por
sortear, sentiu-se ridiculamente pequeno, incapaz de avançar com a segunda
parte do processo.
Sentou-se numa mesa próximo dela, controlando o avanço do
almoço. Quando percebeu que Marta se preparava para as últimas garfadas, pegou
na gelatina e arrastou-se a medo até ela. Olá, disse. Sem que ela respondesse,
continuou. Reparei que não tiraste sobremesa. Posso oferecer-te esta gelatina?
Ela sorriu. Podes, gelatina de morango é a minha favorita. Deslumbrado com o
sorriso dela, Renato sentou-se na conversa da gelatina, de como o empregado lha
tinha dado sem lhe dirigir uma palavra, de como a gelatina faz bem aos ossos,
os mesmos do pé que ele tem tanta dificuldade em distinguir. Ficaram nisto uma
hora e meia. Por volta das quatro da tarde, Marta desculpou-se com um trabalho
e seguiu apressada para ir buscar a filha. Trocaram números de telefone, não
fosse preciso Renato avisá-la quando houvesse gelatina na Cantina.
almoço. Quando percebeu que Marta se preparava para as últimas garfadas, pegou
na gelatina e arrastou-se a medo até ela. Olá, disse. Sem que ela respondesse,
continuou. Reparei que não tiraste sobremesa. Posso oferecer-te esta gelatina?
Ela sorriu. Podes, gelatina de morango é a minha favorita. Deslumbrado com o
sorriso dela, Renato sentou-se na conversa da gelatina, de como o empregado lha
tinha dado sem lhe dirigir uma palavra, de como a gelatina faz bem aos ossos,
os mesmos do pé que ele tem tanta dificuldade em distinguir. Ficaram nisto uma
hora e meia. Por volta das quatro da tarde, Marta desculpou-se com um trabalho
e seguiu apressada para ir buscar a filha. Trocaram números de telefone, não
fosse preciso Renato avisá-la quando houvesse gelatina na Cantina.
Renato
passou o resto do dia a pensar naquela fuga à pressa imaginando obviamente um
encontro com o namorado. Estava a queimar de vontade de lhe ligar. Mas dizer o
quê? A que pretexto? Estás a sonhar Renato, pensou. Quando é que ela vai olhar
para ti?, rematou.
passou o resto do dia a pensar naquela fuga à pressa imaginando obviamente um
encontro com o namorado. Estava a queimar de vontade de lhe ligar. Mas dizer o
quê? A que pretexto? Estás a sonhar Renato, pensou. Quando é que ela vai olhar
para ti?, rematou.
Pelas nove da noite, pegou no telefone e começou a
ensaiar uma mensagem. Olá. Tudo bem? Estava a pensar se poderíamos tomar um
café, ou uma gelatina?
ensaiar uma mensagem. Olá. Tudo bem? Estava a pensar se poderíamos tomar um
café, ou uma gelatina?
Que ridículo, pensou. Correu a apagar o que
escrevera e pelo caminho ouviu o sinal de envio de mensagem que seguira por
engano. Angustiado foi confirmar o que seguira na mensagem. Menos mal, pensou,
seguira apenas o Olá. Quando logo de seguida o telefone estremeceu com a
entrada de uma mensagem, Renato suspendeu a respiração. Na verdade desejou
estar morto para não ter de se confrontar com a resposta. A medo pegou no
telemóvel e deparou-se surpreendido com um Olá. Tudo bem? Com os níveis de
ansiedade e adrenalina em modo de semi-trombose, Renato iniciou uma resposta. A
essa seguiu-se outra e até às duas da manhã trocaram para cima de 50 mensagens.
Falaram imenso e no outro dia encontraram-se na cantina e almoçaram juntos. Renato
falou-lhe de sonhos, da infância dos medos pequenos e das brincadeiras com a
avó em miúdo. Marta também lhe falou de sonhos, mas escondeu Sara, força
inquestionável de amor que surgira inesperada ainda durante o tempo de liceu.
escrevera e pelo caminho ouviu o sinal de envio de mensagem que seguira por
engano. Angustiado foi confirmar o que seguira na mensagem. Menos mal, pensou,
seguira apenas o Olá. Quando logo de seguida o telefone estremeceu com a
entrada de uma mensagem, Renato suspendeu a respiração. Na verdade desejou
estar morto para não ter de se confrontar com a resposta. A medo pegou no
telemóvel e deparou-se surpreendido com um Olá. Tudo bem? Com os níveis de
ansiedade e adrenalina em modo de semi-trombose, Renato iniciou uma resposta. A
essa seguiu-se outra e até às duas da manhã trocaram para cima de 50 mensagens.
Falaram imenso e no outro dia encontraram-se na cantina e almoçaram juntos. Renato
falou-lhe de sonhos, da infância dos medos pequenos e das brincadeiras com a
avó em miúdo. Marta também lhe falou de sonhos, mas escondeu Sara, força
inquestionável de amor que surgira inesperada ainda durante o tempo de liceu.
Nestes encontros noturnos, Renato cedeu rapidamente
e à quarta noite de conversa, protegidos pela distância do telemóvel, não
resistiu à doçura de lhe elogiar o olhar. Ela percebeu o avanço. Quando se
despediram nessa noite, Marta virou-se ao seu diário como todas as noites para
escrever. Começou pela data, esquecendo a hora tardia. Desenhou o nome de
Renato e envolveu nele um coração pequenino, e escreveu, Espero que quando me
conheceres continues a gostar de mim.
e à quarta noite de conversa, protegidos pela distância do telemóvel, não
resistiu à doçura de lhe elogiar o olhar. Ela percebeu o avanço. Quando se
despediram nessa noite, Marta virou-se ao seu diário como todas as noites para
escrever. Começou pela data, esquecendo a hora tardia. Desenhou o nome de
Renato e envolveu nele um coração pequenino, e escreveu, Espero que quando me
conheceres continues a gostar de mim.
Ricardo Caldeira
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