Não é com pedras que se caçam gatos
Na verdade, somos um animal de hábitos. Por isso imaginem que, de quinze em quinze dias, à hora do sagrado sono reparador no final de uma semana de trabalho, lançam a cantar fado malandro à desgarrada. Esgatanha-se na guitarra, requebra-se no canto e, ndependentemente da qualidade dos artistas, ergue-se até à janela a fumarola dos cigarros e as conversas de quem tarda na noite que ainda sobeja despertada.
Voltas e voltas de olhos abertos, imagino, desalmadamente rezando, conjurando, amaldiçoando e rezando outra vez aos deuses todos.
Em desespero de causa, no anónimo escuro da janela interrompido pelo intercalado “ai, ai, que ele vai p’ra guerra”, a ideia genial de que a água acalma até a mais feroz das feras.
O intuito da caça, o alguidar a transbordar suspenso das mãos, e “Ops, lá vai a força da gravidade”.
Alguém lá em baixo, talvez alguém que não contribuíra para o desespero de mais uma noite em branco, leva uma real molha, cabeça e roupa, como uma tempestade localizada. Trocam-se palavras, insultos, e não se cumpre o objetivo de que toda esta gente vá para casa mais cedo, antes se demoram na descoberta de tirar a limpo a origem do inusitado dilúvio.
Talvez quem tenha dado causa a tão cobarde vingança não tenha aprendido a lição, talvez a solitária vítima continue invariavelmente a passar noites em branco intercaladas das noturnas confidências que se julgam insuspeitas e das desgarradas que lhes dão causa. O que é certo, e isto vos posso dizer, é que com ou sem polícia, a janela ficou, digamos, mais arejada. Alguém que já havia tomado incauto banho, lançou mão das pedras da calçada.
Ana Brilha
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